Os Tijolos - Família Relatividade

Desapego

1. Desprendimento.

2. Falta de apego.

3. Facilidade em deixar aquilo a que se tinha apego.

Apego:

1. Aferro, pertinácia, tenacidade, afinco.

2. Inclinação afetuosa; afeição.

Este item bem poderia estar na família atitude, pois é, em verdade, um modo de agir. A razão pela qual se encontra aqui, é para que o foco não seja a postura em si, mas a análise dos fatores que nos permitem desenvolver uma condição de desapego.

Aliás, apelar para a razão é o melhor que se pode fazer ao lidar com qualquer tipo de apego, visto que este é sempre emocional, e não há melhor ferramenta para combater mazelas emocionais que a razão.

Antes, porém, é necessário que consigamos distinguir a diferença entre apego e necessidade.

Vejamos: as pessoas não têm apego a respirar, não têm apego a beber água ou alimentar-se, não têm apego a cobrir-se no frio; essas são necessidades – possuem justificativas racionais.

Por outro lado, as pessoas não têm necessidade do “ar do Mediterrâneo”, de água com gás importada ou de vestir roupas de determinado estilista; essas coisas são simples preferências ou, na pior hipótese, apegos – injustificáveis racionalmente.

A razão de devermos nos manter sempre atentos em relação ao apego é que ele se disfarça constantemente de necessidade para nos convencer a não abrir mão dele. Ao reconhecer no apego uma necessidade, você começa a (tentar) justificar racionalmente algo que é injustificável. E – com o seu perdão pela minha franqueza – afirmo que poucas situações são tão ridículas quanto esta.

Ao tentar justificar o injustificável, é como se você ofendesse a inteligência da pessoa a quem você apresenta seus argumentos. Nesse ponto, sua credibilidade diminui vertiginosamente e, junto com ela, sua capacidade de inspirar confiança e autoridade, como já vimos anteriormente.

Ao contrário da afinidade, que varia de pessoa para pessoa devido às inexplicáveis diferenças de gosto (uns adoram teatro e outros matemática, lembra?), o apego varia mais devido a fatores externos como cultura do povo, criação, ambiente de trabalho etc. Prova disso é que, embora você não consiga fazer uma pessoa gostar de ser professor de matemática se o que ela curte mesmo é atuar no palco – ou vice-versa – você consegue fazer uma criança valorizar roupas de uma marca específica ao usar estas roupas na frente dela, fazendo com que ela considere este comportamento desejável e o adote.

Dentro do exposto acima está a semente necessária para analisarmos o conceito de desapego dentro do fecundo solo da relatividade.

Você sabia que enfermos diante da morte iminente costumam transformar radicalmente seus apegos? Pessoas que sempre priorizaram outros assuntos em detrimento do convívio familiar passam a não querer outra coisa senão estar rodeado de parentes.

Essa é a relatividade do desapego: ele depende demais de fatores externos. Consciente disso, você consegue se livrar de qualquer apego, pois, apesar de nem sempre conseguir alterar os fatores externos, consegue alterar a forma como lida com eles de uma maneira que, apesar de difícil, é simples: alterando sua percepção de valor.

Exemplo financeiro. Imagine a diferença de apego de duas pessoas a uma nota de cinquenta reais. O salário da primeira pessoa é de 10 mil, enquanto que o da segunda, de 500 reais. É claro que terá maior apego à nota de cinquenta a pessoa que ganha o salário de 500, pois, para ela, a nota vale muito mais – relativamente – do que para a outra, ainda que, matematicamente, o valor seja o mesmo para ambas.

O exemplo do enfermo acima tem o mesmo fundamento. Durante toda a vida ele sempre priorizou outras coisas ao convívio familiar porque, no seu inconsciente, sempre haveria tempo para a família em um momento chamado futuro. Sua percepção de valor foi alterada quando ele viu que não haveria mais o tal futuro e que o presente era tudo o que tinha. Nesta nova situação, não importavam mais todos aqueles outros assuntos.

O apego é um mal tão dominador que atrapalha o bom funcionamento da mente das pessoas. Veja esse exemplo de apego em uma situação trivial.

Uma pessoa é convidada para uma festa pela qual precisa pagar e hesita, pois, na opinião dela, o convite a R$ 100,00 está muito caro e ela está um pouco sem dinheiro. Porém, alguém influente lhe consegue um convite especial a 20 reais e, sendo assim, ela aceita.

Qual não é a sua surpresa ao perceber que, também na opinião dela, ela não possui uma roupa adequada, resolvendo adquirir uma nova. Após longa busca, encontra o que acredita ser o modelo perfeito e prepara o seu cartão para exercer seu direito à compra em seis pagamentos, visto que a roupa custa R$ 399,90.

Uma pessoa sensata – talvez um parente da pessoa… como aquele que se tornou parente por ter se casado com ela, por exemplo – questiona a compra, ao que ela responde: “Mas agora eu já comprei o convite!”.

Pergunto: que sentido faz isso?

A pessoa possuía duas opções razoáveis. Uma era desistir da festa e assumir o prejuízo, pela simples razão matemática que 20 é menor que 420. A outra opção era mudar a sua percepção de valor e considerar apta à festa alguma roupa que ela já possuísse em seu armário. Nenhuma das opções foi, no entanto, considerada. O apego falou mais alto.

A primeira opção – desistir da festa – não foi considerada devido ao apego que se tem ao dinheiro já gasto. Aqueles vinte reais já haviam sido gastos. Não ir à festa – ou seja, aparentemente decidir jogar vintão no lixo – parece uma estupidez maior do que comprar uma roupa de 400 reais sem ter dinheiro.

Obs.: Aqui o apego começa o seu trabalho de tentar justificar racionalmente a insanidade com argumentos do tipo “mas a roupa é um artigo de qualidade”, “mas a roupa você poderá usar em outras ocasiões” ou o apelo preferido para encerrar toda e qualquer discussão racional: “eu mereço”.

A segunda opção não foi considerada pelo apego às convenções sociais. É certo que uma pessoa que tem condições de gastar 400 reais em uma roupa não é um mendigo, o que significa que ela deve possuir várias outras roupas. Mas, por uma razão para lá de emocional – baseada em uma louca conta de quantas vezes quantas pessoas já viram uma determinada roupa sendo utilizada em diferentes festas dentro de um mesmo período de tempo (chamado vida) – a pessoa se atira ao precipício financeiro, esquecendo-se de que a festa, por mais divertida que seja, durará somente algumas horas, enquanto as parcelas do cartão…

A explicação para jogar os vinte reais fora sem culpa (sem apego, portanto) é entender que a situação se alterou no meio do caminho. Quando aceitou ir à festa, a pessoa imaginou que teria uma roupa. Descobrir que não a possui altera completamente a situação, pedindo uma nova reflexão sobre o assunto. Esqueça os vinte reais e pense apenas da seguinte forma. Antes, o convite era para você gastar cem reais e, por questões financeiras, você recusou. Agora, convidam a gastar quatrocentos… e você aceita.

Pergunto: que sentido faz isso?

Esse apego aos primeiros vinte reais que arrastam os outros quatrocentos é a vulnerabilidade que as empresas usam para forçar você a comprar um artigo caro oferecendo o pagamento de apenas uma pequena entrada. O artifício é o mesmo: após algum dinheiro comprometido, você será conduzido a perder muito mais nos pagamentos subsequentes, visto que, incoerentemente, sua percepção de valor é maior em relação ao pouco que já gastou do que ao muito que ainda gastará.

Outro exemplo muito instrutivo: coleções.

Imagine uma coleção de fascículos semanais adquiridos em banca de jornal (eu não sou contra, apenas ilustro um ponto de vista). A coleção é “Os grandes pintores do mundo”, em trinta fascículos.

Você compra os primeiros vinte fascículos sem problema, mas passa a ter dificuldades para adquirir os últimos dez. Você já está há três semanas sem notícias sobre seus fascículos, já fez o dono da banca prometer mil vezes que guardaria o seu exemplar, mas ele diz que é a distribuidora que não está enviando corretamente como fazia antes.

Começa a aflição.

Às 17h15 de uma sexta-feira você fica sabendo que há uma banca do outro lado da cidade que talvez tenha alguns dos fascículos faltantes. Você se lança ao agradável trânsito congestionado, levando quase uma hora para percorrer cinco quilômetros. Chegando lá, infelizmente, nada feito.

Às 22h45, você lembra que um amigo mora perto de uma banca e liga para ele, pedindo que gentilmente vá até lá bem cedinho na manhã seguinte e verifique. Ele concorda, com voz de poucos amigos e, após uma noite mal dormida de ansiedade, você recebe a notícia: nada.

Você, então, sai para procurar um pouco mais e tem uma grande ideia. Nos fascículos que já se encontram em seu poder, existe um número de telefone de discagem não gratuita. Do seu celular, você liga para a editora e, após longa espera pelo atendimento, um atendente lhe solicita uma nova longa espera enquanto ele verifica. Verificação concluída. A notícia é até reconfortante: não há cancelamento da publicação em vista. Como, porém, a procura não está alta, a editora está mantendo somente um número mínimo de exemplares. E estes estão sendo, segundo eles, enviados normalmente às bancas.

Você já consumiu dinheiro, tempo, combustível, a paciência do seu amigo que estava de pijamas, ligações telefônicas e um pouco da sua saúde com toda a ansiedade e a correria. Diante de tudo isso, pergunto: você sabe quantos pintores talentosos já passaram pelo planeta? Posso garantir que não foram apenas trinta. Podem ter sido uns trezentos, podem ter sido três mil. Trinta foi o número que a editora escolheu para compor uma seleção e produzir os fascículos.

Por que a editora não escolheu dez? Você não sabe. Por que ela não escolheu sessenta e três? Você não sabe. Ela apenas decidiu que seriam trinta.

E, então, vem a questão do número mágico: e se tivessem sido vinte? Concorda que, se ela tivesse escolhido que seriam vinte fascículos, você teria uma coleção completa em mãos? Por que, então, você não pode decidir que serão apenas vinte e ser feliz?

Você não pode porque, um dia, falaram que seriam trinta e, agora, você já está apegado à ideia de ter em sua estante trinta objetos pertencentes a um mesmo grupo. Por causa do apego à completude da coleção, você mais consegue ficar triste pelos dez fascículos faltantes do que contente pelos vinte já adquiridos. Talvez nem se permita o prazer de folheá-los de tanta angústia…

Estranhos, os seres humanos, não?

Após esse pitoresco exemplo (nem por isso irreal), podemos voltar ao centro do tema para algumas considerações finais.

É importante lembrar que, assim como em alguns itens anteriores o equilíbrio resolveu os problemas de uma aparente contradição, aqui não seria diferente. Enquanto o desapego recomenda o abandono, o esforço prescreve a insistência, a persistência. Reconhecer quando usar um e quando usar o outro é o segredo. Se você está no último ano da faculdade, por exemplo, faltando apenas quatro meses para se formar, não está na hora de largar tudo dizendo que é um mestre na sublime arte de não ter apego a determinado curso universitário ou instituição de ensino; persistir é atitude muito mais razoável.

Uma vez que já conversamos sobre ciclos de crescimento e sobre sua propriedade de auto alimentação, não será tão difícil estimular seu pensamento com essa constatação quase filosófica: É mais fácil exercer o desapego quanto mais você o compreende – e é mais fácil compreendê-lo quanto mais você o exerce.

Portanto, mãos à obra. A prática é o único propósito da teoria. Mesmo porque, manter boas relações com o desapego é fundamental para que você bem compreenda o próximo tijolo: o custo.


Próximo Tijolo: Custo.

Índice para todos os tijolos aqui.

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